quarta-feira, 24 de março de 2010

Pelas barbas do filósofo!

Hoje de manhã um amigo me ligou para fazer uma pergunta, pois um outro amigo dele estava insistindo com uma afirmação histórica e eles não conseguiam chegar a um consenso. Bem, eles ligaram pra mim (claro! Duh!), afinal era minha área de especialidade o tema que eles estavam discutindo, ou seja Roma Antiga. Por isso eu resolvi fazer este post extraordinário para poder responder à pergunta deles, sem precisar ficar gastando créditos de celular.
A afirmação polêmica era a seguinte:

“Os generais romanos mandavam raspar todo o cabelo dos seus soldados para que eles parecessem sem personalidade”.

Muito interessante. É uma teoria. E em História a gente trabalha com teorias, hipóteses e pesquisa. Isto é um exemplo perfeito de hipótese, agora então, a partir de pesquisa e método científico vamos tentar validar ou refutar a hipótese, isto é dizer se ela está CERTA ou ERRADA! (porque em academicês certo e errado são palavrões feios, tipo caralho, buceta, xoxota, escroto, merda.... você entendeu, né? Não são palavras que você fala a mesa com um historiador ortodoxo).
Como considerações iniciais eu posso dizer que, na qualidade de romanólogo com quase cinco anos de experiência (sem contar as coisas que eu lia por conta própria antes de entrar pra faculdade) eu achei uma afirmação muito esquisita. Na verdade ela não fez muito sentido pra mim, mas a gente sempre se surpreende né?!
No entanto, eu acredito que este meu amigo tenha confundido um pouco as coisas, mais especificamente as seguintes coisas: Roma com Grécia/Macedônia, cabelo com barba e medida com objetivo.

POOOHA ETNAO ELE COFUNDIO TDOOO!!!

É, foi meio que um eufemismo. Mas tudo bem, é supernormal confundir Grécia com Roma, foi-se o tempo em que eu daria um ataque histérico por causa disso! Mas a história que este rapaz ouviu é uma história muito famosa. Mas vamos começar do principio, para que eu possa tentar justificar porque eu acho que a afirmação não faz sentido.
Na Grécia Antiga a barba, mas não necessariamente o cabelo, era considerada símbolo de virilidade e sabedoria. Em Esparta por exemplo era comum punir um homem que fizesse alguma coisa vergonhosa cortando a barba dele! A barba era status, os gregos em geral acreditavam que a ausência de barba caracterizava feminilidade (talvez este seja um dos motivos porque eles eram tão pederastas! Uma das regras básicas da pederastia grega era que um homem só podia pegar um menininho até ele começar a ter barba).
No século IV a.C. Alexandre, O Grande (que não era eu, infelizmente), revolucionou a moda grega. O Xandi não era grego, na verdade ele era Macedônico, um reino primo das cidades gregas (NOTA IMPORTANTE: JAMAIS, SOB HIPÓTESE ALGUMA, DIGA PRUM GREGO QUE ELE É PRIMO DE UM MACEDONICO E NEM VICE-VERSA!!), mas naquela época a Grécia comia na mão dos macedônicos. A revolução fashion que ele instaurou foi a seguinte: ele ordenou que todos os seus soldados vivessem de barba perfeitamente feita e cabelo raspado.
Para perderem a personalidade? Bem, não. Porque as moedas da época mostram que mesmo os reis macedônicos faziam isso. A justificativa para tal medida era o medo que o Alê tinha do inimigo puxar seus soldados no campo de batalha pela barba ou pelo cabelo e decepar-lhes a cabeça. Como até então os gregos tinham uma puta cabeleira isto não seria tão difícil (quem assistiu Os Incríveis pode fazer uma associação do cabelo e da barba grega com a capa dos super-heróis).
Como o Alexandre era foda e seu império mais foda ainda (não, não mais foda ainda, ele era tão foda quanto, é, era...) a moda pegou rapidinho e logo em toda a Grécia e Macedônia os homens passaram a fazer a barba e deixar o cabelo curtinho, até Aristóteles fez isso, embora fosse costume dos filósofos deixar a barba bem grande. Na verdade os filósofos eram uns dos únicos homens da época que sustentaram a barba e o cabelo grandes, então pelo fato dos filósofos fazerem isto e Aristóteles, o maior filósofo da época, não fazer, que surgiu aquela famosa expressão: “a barba não faz o sábio”. (o engraçado é que apesar de eu ler isto em vários lugares eu sempre vejo imagens e estatuas de Aristóteles com barba... ele deve ter feito isto apenas por um tempo, se bem que a barba que ele usa nas imagens é sempre bem discreta, sem comparação com o barbão dos espartanos ou o barbão do Platão e do Sócrates).
Bem, e em Roma?
Em Roma, numa época bem remota, tipo antes do século II a.C. a moda ainda era barba grande (naquela época não tinha Internet, não tinha Rio Fashion Week, não tinha Gisele Bundchen, então as tendências demoravam para circular) No início Roma era bem pela-saco dos gregos, eles tinham praticamente a mesma cultura, os mesmos costumes, mas com o tempo os romanos foram adquirindo personalidade própria. No século II a.C. os romanos já tinham bastantes diferenças em relação aos gregos.
Um general romano chamado Scipião ouviu falar da técnica do Alexandre e resolveu testar contra Carthago (império arqui-inimigo de Roma na época). Deve ter dado certo, porque a moda de cabelo curto e barba feita acabou virando marca registrada dos homens romanos.
No século I a.C. isso já estava tão na alma da sociedade que a barba passou a ser considerada uma coisa suja para os romanos, não é a toa que eles associavam automaticamente a barba aos bárbaros celtas e germânicos, que gostavam de andar por aí com aquele barbão e uma cabeleira intimidadora!
Como os maiores inimigos dos romanos a partir do século I a.C. passaram a ser justamente estes bárbaros, nada mais natural que para se diferenciarem os romanos assumissem uma aparência totalmente contrária à deles! Ou seja: se os bárbaros tem barba e cabelo grande, o romano tem o rosto liso e cabelo curto, se o bárbaro bebe cerveja o romano bebe vinho, e por aí vai... Em História e Sociologia geralmente chamam isso de “Identidade” cultural, mas isso aí é um assunto que reeeende...
Enfim, os romanos não necessariamente raspavam a cabeça, mas certamente faziam a barba e mantinham o cabelo curto. Quanto ao motivo, não acredito que seja por causa de personalidade, mas mais por questão estratégica, cultural/higiênica (não esqueça que não existia xampu na época!!!) e para se diferenciarem dos gauleses e germânicos. Quer dizer que é justamente ao contrário: eles faziam isso para reforçarem sua personalidade como romanos!
Na cultura romana não faria muito sentido um general ou líder de qualquer tipo tomar uma medida que anulasse a personalidade de outro indivíduo ou que o apagasse. Roma era uma sociedade fundamentada no principio antigo de República, que pressupõe a igualdade e a liberdade dos cidadãos (romanos, é claro!) e uma dos principais pressupostos desta igualdade é o de que nenhum homem se submete a outro (claro que isto não significa que um soldado não tem que respeitar o general! Aí já é outra história!), mas no meio social civil o ideal é que os cidadãos se tratassem como iguais.
Beeem mais tarde, no século II e III d.C. um imperador romano chamado Adriano (que não é aquele marginal que joga futebol) lançou novamente a moda da barba em Roma. Ele um grande fã da cultura grega e gostava de filosofar, então pra ficar parecido com um filósofo ele deixou a barba crescer. Acabou pegando e apesar dos costumes romanos terem abominado a barba por tanto tempo, eles voltaram a usá-la, mas mais como símbolo de sabedoria e maturidade. Nesta época também já tinha muito gaulês e germânico vivendo e trabalhando em Roma e servindo no exército romano e os romanos acabaram se acostumando com barba e cabelo grande de novo.
Então eu espero ter esclarecido algumas coisas. Você vê que a afirmação não foi tirada do nada, realmente há muita coisa que pode ser dita sobre barba e cabelo na Antiguidade Clássica. Mas resumindo, em conclusão:


Os generais romanos mandavam raspar todo o cabelo dos seus soldados?

R: Eles o fizeram por um bom tempo, sim. Mas não necessariamente TODO o cabelo: a barba deveria ser toda feita, o cabelo deveria ser no máximo curto.


Eles faziam isto para que eles parecessem sem personalidade?

R: Duvido muito. Isto não condiz com a cultura romana. Havia motivos práticos para eles fazerem isto, os mesmos que o exército de Alexandre, o Grande, por exemplo, mas também como uma forma de Identidade cultural e o que eles acreditavam ser higiênico.


É isto por hoje! Tenham uma boa tarde!
Salve!

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